Império de Geraldo Rufino, o “catador de sonhos”, está na mira da polícia

Documentos obtidos pelo Metrópoles mostram que Geraldo Rufino é processado por calotes milionários e é suspeito de ter montado um laranjal

O empresário Geraldo Rufino, de 64 anos, ficou famoso no país por ter uma história tão inspiradora quanto clássica — a do self-made man que, graças ao espírito empreendedor e à resiliência, saiu de uma condição extremamente modesta, para alcançar fortuna e adentrar o eldorado capitalista. De catador de latas na rua, Rufino se tornou o milionário dono de uma rede de desmanches legais e venda de peças de caminhões. O case de sucesso lhe rendeu mais de dois milhões de seguidores nas redes sociais, entrevistas em talk shows de grande audiência e contratos para dar palestras por todo o país. O seu assunto, como não poderia deixar de ser, é sobre como brilhar no mundo dos negócios.

Nascido em Campos Altos, em Minas Gerais, e criado na favela do Sapé, na zona oeste de São Paulo, Geraldo Rufino tem sido apresentado em programas de televisão e em reportagens de jornais como o “catador de sonhos”, título um tanto poético da sua autobiografia, na qual o “empresário visionário” faz a apologia da determinação, do otimismo e da superação. A Jô Soares, em 2015, ele contou que começou a trabalhar aos oito anos, em uma fábrica de carvão — praticamente um personagem do inglês Charles Dickens. Em maio deste ano, no programa de Danilo Gentilli, do SBT, deu a seguinte lição de vida: “As pessoas estão lamentando muito, agradecendo muito pouco, e a vida toda eu vivo assim”.

Os seus dois livros — o segundo se chama “O Poder da Positividade” — lançam mão da receita tradicional do gênero da autoajuda e, ao todo, foram vendidas mais de 50 mil cópias. Parte da história inspiradora de Geraldo Rufino passa pela “superação” de cinco falências, que são temas de videoaulas na internet, onde ele dá dicas de como lidar com as dívidas: “Guarda (o dinheiro) onde der para guardar. Pai, mãe, sobrinho, guardem no colchão e não tem problema”, diz Rufino. “O credor vai te pressionar o tempo todo. Não espere diferente”.

Na mira da polícia e da Justiça

Rufino não está conseguindo superar, contudo, as sérias suspeitas que recaem sobre ele, da parte não apenas de credores que o pressionam o tempo todo, mas também da polícia e da Justiça. Documentos obtidos com exclusividade pelo Metrópoles mostram que o império de Rufino, que se vangloria de ter a maior rede de desmanche de veículos pesados da América Latina, com R$ 50 milhões de faturamento por ano, é alvo de investigações e decisões judiciais que envolvem fraudes milionárias e diversos crimes, como falsificação de documentos, lavagem de dinheiro e clonagem de veículos.

Há um inquérito em curso na Polícia Civil de São Paulo e outro na Polícia Federal (PF) que miram a família do empresário e suas empresas. Na esfera estrita das dívidas, decisões judiciais têm reconhecido o uso de laranjas para Rufino se esquivar de pagamentos e driblar execuções milionárias. Credores acusam Rufino de enriquecer com a fórmula mais banal da autoajuda: comprar — ou pedir dinheiro emprestado — e nunca pagar. Nunca é nunca mesmo: quando acionado na Justiça para pagar o que deve, resulta que pouco ou quase nada está em seu nome.

Os seus bens são sempre de um parente, ou de um parente do parente, ou mesmo da secretária que serve o café na JR Diesel, a sua empresa de desmanche fundada em 1985. O cipoal de relações é grande: ele tem sete irmãos e seis filhos.

Prejuízos (e lucros) milionários

JR Diesel entrou em recuperação judicial em 2016, com dívidas de R$ 40 milhões. Sete anos depois, o processo não acabou. Em resposta a um breve formulário do administrador judicial, nomeado pelo juiz do caso para conduzir o processo de saneamento das contas da JR, um dos filhos de Geraldo afirmou que a “excessiva retirada de lucros pela família” poderia ser um dos motivos da crise financeira da empresa. Naquela época, havia gastos de até R$ 80 mil da empresa com cartões de crédito em apenas um mês e mais de R$ 200 mil em “condomínios”. Como a empresa tem galpão próprio, não fica em prédio nenhum, a rubrica “condomínios” causou estranheza.

Em períodos de saldos negativos milionários, a esposa de Geraldo Rufino chegou a receber pagamentos de até R$ 1,3 milhão, a título de distribuição de lucros, segundo relatórios do próprio administrador judicial. Credores quiseram esmiuçar os gastos e dividendos exorbitantes da empresa à beira da bancarrota, mas entraram em rota de colisão com o administrador judicial da JR Diesel — que simplesmente passou a discriminar ainda menos os resultados de balanços da empresa. Alguns dos resultados sequer foram apresentados. As reclamações e denúncias de credores chamaram a atenção do Ministério Público, que tem cobrado esclarecimentos do administrador judicial.

Um milionário com R$ 9,34 na conta

A pedido de credores, Rufino é alvo de bloqueios bancários e de bens na Justiça. As dívidas totalizam R$ 15 milhões. Uma tentativa da Justiça de confiscar os seus ativos para pagar tais dívidas não deu em nada, porque apenas R$ 9,34 foram encontrados nas contas de Rufino.

O saldo paupérrimo contrasta com a vida de luxo que Rufino e a sua família levam em Alphaville, um condomínio de ricos próximo à capital paulista. Ao impor os bloqueios bens, juízes afirmam que os Rufino ostentam um padrão de vida “incompatível” com o que eles têm no banco, e “há fortes indícios” de que as empresas em nome de pessoas de confiança pertencem, de fato, ao “catador de sonhos”.

Credores como a gigante de logística JSL e a Movidas, do ramo de locação de veículos, buscam catar o que é deles, por meio do confisco de saldos de empresas da família. Mas a tarefa é hercúlea. Em uma das ações, advogados expuseram a troca de mensagens com uma mulher que admite ser apenas “secretária da família” há cinco anos, mas que figura como sócia de uma das empresas que, na verdade, pertenceriam ao clã. Nesse caso, um juiz decidiu bloquear as contas da firma e ressaltou que há “sérios indícios” de que empresas de Rufino foram criadas com apoio de “funcionárias laranjas”.

Somente em nome de parentes de Rufino, há 45 empresas de venda de peças de caminhões. Nem todas existem fora do papel. Cinco estão registradas em um galpão atrás de um posto de gasolina na Marginal do Rio Tietê, em Osasco, a poucos quarteirões do endereço da JR Diesel.

É o caso, por exemplo, da JR Serviços, em nome de Maria das Dores Rufino, irmã de Geraldo. À Justiça os próprios advogados da empresa reconheceram que a JR Serviços funciona em uma sala comercial dentro de “um imenso galpão nas dependências” do posto. Eles anexaram ao processo um contrato de locação da tal sala, no qual o locador é uma das empresas de Geraldo. Nada procede. Nem o galpão nem o posto de gasolina são do empresário, segundo apurou o Metrópoles. À reportagem frentistas e gerente afirmam sequer conhecê-lo. O posto de gasolina está em nome de um empresário que não tem qualquer relação com Rufino.

O filho na mira da PF

Foi ao lado de um dos filhos que Geraldo Rufino foi incluído numa teia de relações desenhada pela Polícia Federal. Guilherme Rufino, o filho, era CEO da JR Diesel quando a Operação Fiat Lux foi deflagrada com autorização da Justiça Federal de Brasília, em fevereiro de 2022. O seu nome constava de um dos seis mandados de prisão a serem cumpridos pela PF. Considerado foragido, ele obteve um habeas corpus para evitar a cadeia. A Fiat Lux investiga a clonagem de 3,3 mil veículos do Exército. O esquema tinha a participação de servidores do Detran, que inseriram os dados falsos de veículos em sistemas oficiais.

No caso de Guilherme, que é também sócio de uma empresa chamada GFR, a PF suspeita da clonagem de chassis de 24 veículos do Exército. Eram 18 caminhões e reboques e seis Land Rovers registrados com um endereço atribuído à GFR no interior do Pará. No endereço, porém, a PF encontrou apenas um terreno abandonado cheio de mato alto. Os investigadores afirmam que as Land Rovers com chassis clonados de veículos do Exército não existem. Foram inventadas no papel, para dar em garantia em financiamentos ou até mesmo em ações por dívidas cobradas na Justiça — uma fraude, portanto. Relatórios da PF também mostram que Guilherme movimentou, em um ano, 16 vezes a renda declarada à Receita Federal — o que ligou o alerta para a suspeita de lavagem de dinheiro.

Durante as investigações, a PF chamou atenção para o “inevitável vínculo” entre as empresas de Guilherme e as do pai. Só Guilherme, por ora, é investigado formalmente.

Assim como o pai, Guilherme também acumula ações judiciais por dívidas. Escola dos filhos, condomínios, IPTU e um apartamento em Alphaville que acabou leiloado. Ele comprou um Porsche Cayenne e deixou a vendedora a ver navios. O caso está há sete anos na Justiça.

Em uma mensagem de WhatsApp enviada à vendedora do carro e obtida pelo Metrópoles, o próprio Geraldo Rufino afirmou que “pretende” retomar as negociações para pagar pelo Porsche, o que jamais aconteceu. “Me perdoe pelos transtornos causados, mas até agora não houve má-fé e sim uma fase material complexa, mas que será superada”, disse Geraldo à vendedora.

O detalhe da “fase material complexa” é que somente o relatório d0 Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) anexado à Operação Fiat Lux dá conta de que, em um ano, Guilherme movimentou mais de R$ 5 milhões em suas contas. O período coincide com o do calote na compra do Porsche.

O entregador

Na lista de empresas investigadas em nome de parentes de Geraldo Rufino está a Perfil Diesel. Ela tem como único sócio o seu sobrinho neto, Pedro Henrique de Santana, de 25 anos. Com salário de R$ 1,3 mil mensais, ele é entregador terceirizado de encomendas do Mercado Livre. Oficialmente, em registros da Junta Comercial de São Paulo, Pedro Henrique herdou a empresa da sua avó de 78 anos, irmã de Geraldo.

No dia em que agentes da Polícia Civil de São Paulo estiveram na sede da Perfil Diesel, quem se apresentou como dono foi Aristides Bispo de Santana, pai de Pedro e sobrinho de Geraldo.

A investigação foi aberta neste ano. Em relatório entregue à Justiça, a Polícia Civil afirma investigar uma “família atuante no ramo de desmanches de caminhões que mantém um elaborado esquema de lavagem de dinheiro, com empresas em nome de pessoas interpostas, dentre elas, diversos familiares”.

A Polícia Civil diz ter encontrado dois “núcleos criminosos”. Um deles é o de operadores do esquema. A função é atribuída a Aristides. O segundo núcleo é o dos “laranjas”. Pedro Henrique e a avó estão nele. Ao puxar a ficha do rapaz, formalmente dono da Perfil Diesel, os investigadores confirmaram, de diversas formas, que ele nunca esteve no local e encontraram boletins de ocorrência em que Pedro Henrique, na condição de entregador do Mercado Livre, se disse roubado durante o trabalho.

Aristides disse aos policiais, quando abordado na condição de real dono da Perfil Diesel, que “ele e sua família atuam no ramo do desmanche de caminhões há muito tempo, estando ele há vinte e cinco anos neste mesmo métier”. Afirmou ainda que “deliberou por registrar sua empresa em nome de seu filho por uma questão estratégica, eis que ele já possuiu outras empresas e essa solução seria a mais conveniente para os negócios da família”. A Polícia Civil descobriu, no entanto, que Aristides não tem qualquer empresa registrada no seu nome.

Os investigadores querem interrogar os parentes de Rufino e sugeriram que o Coaf faça uma devassa nas movimentações atípicas e suspeitas da família. Em relatório submetido à Justiça, eles afirmam que “há relevantes indícios de autoria e materialidade de crime de falsidade ideológica, além de forte suspeita da prática do crime de lavagem de dinheiro”. O inquérito não cita nominalmente Geraldo Rufino, mas representa mais uma investigação que põe em xeque o império criado pelo “catador de sonhos”.

Advogado da família Rufino, o ex-promotor de Justiça Arthur Migliari se recusou a responder às perguntas enviadas a ele e ao empresário. “Como você chegou a isso aí e como está essa situação?”, indagou ao Metrópoles. Ao ser explicado de que a reportagem se baseia em processos judiciais — em parte, públicos —, ele respondeu que a “indenização também é pública”, referindo-se a “quem fizer informação falsa”. “Se você mandou a informação para quem de direito, então pergunta para eles, e não para mim”. Questionado se essa seria a resposta final da defesa, ele disse: “Então está bom, até logo”. Novamente questionado se não se manifestaria, ou se diria qual seria a informação “falsa” nas perguntas enviadas pelo Metrópoles, ele silenciou.

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