Coluna. O que de fato importa

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Por Luzitânia Silva

Os caracóis de seus cabelos rubros caíam fartos sobre os ombros. Os fios brilhavam cada vez mais à medida que o sol resplandecia. As lágrimas escorriam pelo rosto angelical e seu coração aflito parecia querer saltar pela boca. Já chegava à clínica enquanto pensava no ocorrido.

Ainda ontem seu namorado sumiu do mapa. Juliana se lembrava da cena como se vivenciasse no exato momento. Rafael deitado na cama, entrelaçado a uma mulher, sua melhor amiga, a Kátia. Seus corpos nus, cobertos apenas por um lençol branco e fino, demonstravam intimidade descomunal, já que aparentavam se odiar anteriormente.

Se quisesse deixar a Kátia irritada, falasse de Rafael em sua frente. O veneno escorria no canto da boca e as palavras proferidas deixavam qualquer ser humano perplexo.

Caso Juliana ousasse pensar em mencionar o nome da amiga, Rafael se rebelava de imediato, falando impropérios a respeito da dita cuja. Mas, chegava a ser chocante, tanto ódio não passava de paixão animalesca. Era tosco. Imundo. Podre. Vê-los dormindo após a possível selvageria anterior a indignava, do mesmo modo que a deixava petrificada na porta do quarto, sem fazer o mínimo ruído.

Com boca entreaberta, olhos arregalados, pele pálida e corpo imóvel, ela não cria na visão infernal. Pensou em sair dali, tentando anular aquilo de sua memória ou sabe-se lá o que… Ela não tinha ideia para onde ir, se deixaria a chave do apartamento dele em cima de uma mesinha na sala ou levaria consigo. Não conseguia nem chorar.

Ele se movimentou na cama, abraçou a garota ao seu lado e falou que a amava bem baixinho e carinhosamente ao pé do ouvido. Juliana arregalou os olhos e um grito saiu sem que percebesse. Os dois, afoitos e surpresos, pareciam caças e, vendo-a como um caçador cruel, ficaram sem reação. Ela também não disse nada. Apenas um tremor e uma lágrima solitária insistiam em demonstrar sua fraqueza. Não havia o que dizerem, já estava tudo concatenado. Todas as peças se encaixavam. Ela se virou, jogou a chave no chão e bateu a porta.

Juliana foi apenas vê-lo porque se sentia sozinha e havia muitos problemas para resolver. Não aguentava o fardo pesado e mais um, bem grande, caia sobre suas costas. A dor era forte demais.

Agora já estava sendo atendida pelo médico da família. Era uma consulta simples e de rotina. Foi pela obrigação. Ia deixar cancelar, mas resolveu não procrastinar novamente. Entrou na sala e o Dr. Miguel foi cumprimentá-la de imediato, sorrindo também com os olhos.

_ Bom dia! Ainda bem que apareceu! Vai fazer também o exame ou só a consulta? Já tem alguns anos que a senhorita não aparece por aqui!

_ Bom dia, doutor! Haja vista minha demora, farei o Papanicolau e a consulta também.

_ Perfeito. Importante cuidar da saúde. Fico feliz com sua presença. Quanto tempo que não faz o exame?

_ Nem lembro a última vez. Deve ter alguns bons anos.

_ Uns dois?

_ Uns cinco!

O doutor pareceu estarrecido e, enquanto a examinava e coletava a amostra ia conversando. Num dado momento parou. Ela se surpreendeu com a parada de supetão, sem nem ao menos terminar a frase.

_ O que houve?

Ele questionou se ela tinha sangramentos frequentes, ela assentiu. Perguntou se sentia dor ao urinar, durante o sexo ou na área pélvica e ela também confirmou, ao mesmo tempo em que se assustava. Percebendo seu desconforto, ele a explicou calmamente que havia identificado algumas alterações, entretanto seria necessário fazer uma biópsia para certificar se era tumor benigno ou maligno. Tirou todas as dúvidas que ela teve no momento e a acalmou momentaneamente.

Dias depois Juliana se encontrava na mesma sala com o resultado do exame. Recebendo a confirmação de ter câncer de colo de útero, várias coisas passaram por sua cabeça. O tratamento doloroso, a possível queda de seus cabelos, que por sinal eram sua paixão, o flagra da traição do seu então namorado e sua então melhor amiga, os problemas familiares e financeiros, dentre outras questões, se tornaram pequenos, ínfimos, em relação a necessidade de viver. Ela descobriu que viver é o que de fato importa e, por isso, não se ateria a minúcias.

 

NOTA

Segundo o Instituto Nacional de Câncer José de Alencar Gomes da Silva – INCA, o câncer do colo do útero, é causado pela infecção persistente por alguns tipos (chamados oncogênicos) do Papilomavírus Humano – HPV. A infecção genital por este vírus é muito frequente e, em alguns casos, podem ocorrer alterações celulares que poderão evoluir para o câncer. É o terceiro tumor mais frequente na população feminina, atrás do câncer de mama e do colorretal, e a quarta causa de morte de mulheres por câncer no Brasil.